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Foto: Acervo Cepe e Pércio Leandro Siqueira/Divulgação |
Na história do rock, existem aquelas introduções com solos inconfundíveis e que acionam as mais diversas emoções, sobretudo quando executadas ao vivo. O rock não é bem o ritmo que dá cara ao carnaval de Pernambuco, mas existe uma intro de guitarra que provoca exatamente essas sensações durante a grande festa: Anunciação, de Alceu Valença. E quem foi que criou este solo tão incrustado no sentimento de pernambucanidade? Paulo Rafael.
Um dos responsáveis por levar a força do rock para canções influenciadas pela música regional nordestina, o guitarrista e produtor musical, membro da lendária banda psicodélica Ave Sangria e que ajudou a construir a sonoridade de Alceu como conhecemos, faleceu na última segunda-feira (23) de complicações causadas por um câncer de fígado. A doença só foi divulgada no círculo íntimo do artista, por isso a morte causou surpresa. Ele deixou a esposa, uma filha e uma neta. O velório e a cremação foram realizados no Rio de Janeiro.
Natural de Caruaru, Paulo Rafael foi morar no Recife ainda criança, mas sempre guardou um grande fascínio pelo interior, seus pífanos, toadas e xotes. Quem ajuda a rememorar a sua infância e adolescência é o cartunista Lailson de Holanda. "Eu morava no Espinheiro, e ele em Campo Grande. Quando nos conhecemos, eu tinha 14 anos, e ele 16. Paulo já tocava numa banda chamada The Jopens, eu entrei como baixista e cantor. Tocávamos Beatles, Os Mutantes, era uma banda de subúrbio, de garagem. Chegamos a ir para clubes, mas éramos menores de idade", relembra Lailson, que no começo dos anos 1970 produziu, com Lula Côrtes, o mítico LP Satwa, considerado o primeiro LP independente da moderna música brasileira.
Na efervescência da cena udigrudi do Recife, a segunda banda de Paulo Rafael foi a Phetus, fundada por Lailson e também composta por Zé da Flauta e Bira Total. "Nos juntamos para fazer um show com esse nome, mas terminou virando o nome da banda. Chegamos a ir para programas de TV e shows coletivos." Com o fim da Phetus, Paulo Rafael ingressou no Tamarineira Village, que no começo de 1974 mudaria de nome para Ave Sangria, onde ele dividia guitarras com Ivson Wanderley, o Ivinho, e foi responsável pelo uso de um sintetizador na intro de Dois navegantes.
Com apresentações memoráveis nos teatros Santa Isabel e do Parque e em casas de shows de Salvador e Natal, o grupo não demorou muito em atividade após o lançamento do clássico álbum homônimo, em 1974, por perseguição dos militares, incomodados com uma música que sugeria um relacionamento homossexual, Seu Waldir. Mas ali já tinha se formado os pilares do futuro da música pernambucana.
Em 1975, Alceu Valença apresentou Vou danado pra Catende no Abertura - Festival da Nova Música, da TV Globo, e levou Paulo Rafael junto com Zé Ramalho, Lula Côrtes e mais músicos das antigas Ave Sangria e Phetus. Ivinho tocou guitarra, enquanto Paulo Rafael tocou baixo. Surgia ali uma linhagem musical já bastante documentada pela mídia e indústria cultural.
Paulo Rafael já vinha construindo a fusão do rock progressivo com a música nordestina, algo que só alcançou o mainstream através de nomes como Alceu Valença. "Ele descobriu com a gente que não precisava negar as influências do rock, que também poderia se voltar para o regional", disse Alceu, ao jornal Estado de Minas, em 2014. "Tornou-se um dos guitarristas mais originais do Brasil e conhece a música do interior, dos violeiros e aboiadores. Isso os guitarristas não conhecem, pois sabem é de balada, não de toada; do rock, e não do xote. Ele é supercriativo, tem sonoridade e bom gosto inacreditáveis. Originalíssimo. É uma referência e um grande amigo. Trabalhamos juntos na definição do meu som. Ele teve um papel fundamental nisso."
Em 1980, ao lado de Zé da Flauta, antigo parceiro da Phetus, ele lançou Caruá (1980), uma raridade entre colecionadores de discos. Pela agenda sempre ocupada, só conseguiu gravar três discos solos: Orange (1992), Vagalume (1995) e Alado (2010), todos raridades nos sebos.
"Ele foi um dos meus primeiros guitar heros. O que ele fazia era tudo o que queríamos: poder tocar rock e blues sem deixar as nossas origens de lado", sintetiza o guitarrista baiano radicado em Pernambuco Luciano Magno. "Muita sorte daqueles que puderam conviver, uma dádiva para aqueles que puderam tocar com ele. O homem vai e a obra fica", publicou Lúcio Maia, guitarrista da Nação Zumbi. "Era um cara muito humilde. Ele nem queria que ninguém soubesse da morte dele. Queria ficar lá no cantinho dele e pronto. Todo mundo tem uma dívida com a Paulo, por conta de sua genialidade e musicalidade", diz o músico e produtor musical pernambucano Riva Le Boss.
"Foi um dos caras mais carinhosos e conciliadores com quem já convivi. Conheci Paulo há mais de 40 anos e sempre admirei sua capacidade inventiva na música. Era um exemplo de como lidar com a fama e com o mundo artístico de forma profissional, mas sem perder a paixão pelo que fazia. Perdi um amigo e também um dos meus ídolos", declarou Marcelo Canuto, presidente da Fundarpe. "E um ídolo não apenas meu, mas dos meus dois filhos também. Isso dá um exemplo do talento de Paulinho, que atravessou gerações. Pernambuco e o Brasil perderam um dos maiores músicos de todos os tempos."
"Ele deu o seu voo mais alto para ir de encontro à paz. A essa altura, já deve estar contando aos outros seres de asas, as histórias sobre suas aventuras e conquistas que o fizeram insubstituível. Todos os aplausos pela belíssima passagem desse gênio que já nasceu com o dom de ser eterno", escreveu o perfil da Ave Sangria. A genialidade de Paulo Rafael será sentida sempre que sucessos como Anunciação inflamarem multidões em Olinda, no Recife ou Brasil afora.